Nivaldo Esperança*
“Clara/ abre o pano do passado/ tira a preta do serrado/ põe rei Congo no Gongá/ Anda/ canta o samba verdadeiro/ faz o que mandou o mineiro, ô mineira". Esses versos de "Mineira", homenagem a Clara Nunes composta por João Nogueira e Paulo César Pinheiro, mostra um pouco do que foi a cantora: ajudou a tirar o samba do limbo nos anos 70. Mas, com a mesma competência e talento, passeou por diversos ritmos, dando grande contribuição à MPB, ao fazer uma mistura de Brasil e África. Mas até alcançar lugar de destaque na música brasileira, Clara Nunes trilhou um longo caminho, que incluiu o trabalho como operária em fábrica de tecidos, em Belo Horizonte. Anos mais tarde, quando já era uma estrela, disse em entrevista, publicada no GLOBO em 25 de maio de 1976:
— A minha sorte foi não ter feito sucesso rápido. Então, quando ele chega depois de dez anos de carreira, a gente encara a coisa com naturalidade. Afinal, o medo já passou e você já aprendeu a conviver com o sucesso.
Natural de Paraopeba (hoje Caetanópolis), Clara Francisca Gonçalves Pinheiro nasceu em 12 de agosto de 1942, cidade a uma hora de Belo Horizonte. Era a caçula entre sete irmãos, filhos de Amélia Gonçalves Nunes e Manuel Ferreira de Araújo, de quem parece ter herdado o talento musical: Mané Serrador (assim apelidado por ser marceneiro) era violeiro e participante das festas de Folia de Reis. A família modesta não tinha rádio mas, um dia, Clara viu Emilinha Borba num show em um cinema de Sete Lagoas. Foi o suficiente para abraçar o sonho de ser cantora. Aos 6 anos, Clara já era órfã de pai e mãe e acabou sendo criada pelos irmãos Maria e José.
Em 1952, com apenas 10 anos, Clara ganhou seu primeiro concurso, interpretando “Recuerdos de Ypacara”. Tempos depois, a jovem envolveu-se em uma tragédia, quando o irmão José assassinou seu ex-namorado, que a difamara. O episódio foi decisivo para Clara mudar-se para Belo Horizonte. Na capital mineira, a moça trabalhava na fábrica de tecidos de dia, fazia o Curso Normal à noite e, nos fins de semana, cantava em um coral da Igreja. Fã de Ângela Maria, Carmem Costa, Dalva de Oliveira e, principalmente, Elizeth Cardoso, ela passou a se apresentar nas atividades promovidas pela empresa em que trabalhava, e logo estava se aventurando nos programas de calouros, com músicas românticas. Em 1960, inscreveu-se no concurso “A voz de ouro do ABC”, com “Serenata do adeus”, de Vinicius de Moraes, já com o nome artístico de Clara Nunes, por sugestão do produtor musical Cid Carvalho, vencendo na etapa Minas. Acabou ficando em terceiro lugar nas finais em São Paulo, ao cantar “Só Deus”, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia.
As apresentações no concurso abriram as portas para Clara em Minas Gerais, apoiada pelo violonista Jader Ambrósio, (compositor do "Hino do Cruzeiro"), e conheceu muitos artistas da Jovem Guarda, por intermédio do namorado, Aurino Araújo, irmão do cantor Eduardo Araújo. Foi contratada pela Rádio Inconfidência e trabalhou em boates, tendo como baixista Milton Nascimento, que na época ainda era conhecido como Bituca. Durante três anos seguidos foi considerada a melhor cantora do estado.
Em 1963, estreou um programa na TV Itacolomi, “Clara Nunes apresenta”, que foi ao ar por um ano e meio. Em 1965, Clara Nunes decidiu ir para o Rio de Janeiro, onde participou dos programas de José Messias, Chacrinha, além do “Almoço com as estrelas”, de Aerton Perlingeiro. No ano seguinte, foi contratada pela Odeon, onde permaneceu por toda a carreira, e gravou seu primeiro compacto simples, com “Amor quando é amor”, de Niquinho e Othon Russo, e “De vez em quando", de João Roberto Kelly. No mesmo ano, lançou o primeiro LP, “A voz adorável de Clara Nunes”, interpretando, principalmente, boleros e sambas-canções. Nada aconteceu. Em nova tentativa, veio a fase Jovem Guarda, com outro fracasso. Nos festivais, também não conseguiu brilhar. Em 1968, após insistir com a gravadora, Clara Nunes gravou o samba “Você passa eu acho graça”, de Ataulfo Alves, e o sucesso aconteceu.
No início dos anos 70, ao conhecer o radialista Adelzon Alves, muito bem relacionado no mundo do samba, teve certeza da escolha. Ele foi decisivo para a escalada rumo ao estrelato, consolidando Clara Nunes como sambista, com um repertório carioca, popular, afro. O sucesso “Ê baiana” veio a seguir, e, em 1975, a consagração com o LP "Claridade" (puxado por "O mar serenou"), derrubando de uma vez só dois tabus: que samba e mulher cantando o gênero não eram comercialmente viáveis. O disco vendeu 600 mil cópias. Ainda no mesmo ano, Clara Nunes, chamada de Guerreira, cantou na avenida o samba-enredo da sua escola de samba de coração, a Portela, “Macunaíma, herói da nossa gente”, de Norival Reis e Davi Antônio Correa.
Separada de Adelzon Alves, casou-se com o poeta e compositor Paulo César Pinheiro, inaugurando uma nova fase na carreira, quando procurou ir além, gravando xotes, baiões e MPB. É dessa fase o sucesso com “Feira de mangaio” (1978), de Sivuca, tão bem recebido pelo público e pela crítica quanto seus sambas dos primeiros discos, no início dos anos 70. A ligação entre a "mineira guerreira" e a religião esteve presente em toda a sua trajetória, desde o coral na Igreja Católica, passando pelo espiritismo, umbanda e candomblé. A cantora também era uma supersticiosa assumida.
Clara Nunes brilhou ainda em dois importantes musicais: ”O poeta, a moça e o violão” (1972), com Toquinho e Vinicius, que rendeu um álbum com 17 canções, entre elas a "Serenata do adeus", que lhe dera a vitória no concurso de 1960. Dois anos depois, participou de “Brasileiro profissão: esperança”, com o ator Paulo Gracindo. Pesquisadora da MPB, e interessada em valorizar cada vez mais a cultura brasileira, seus ritmos e folclore, em 1977 ela inaugurou, no Shopping da Gávea, no Rio, o Teatro Clara Nunes, um espaço para abrigar produções nacionais.
Com apresentações na Europa, na África e no Japão, Clara brilhou com sambas de cantores renomados e desconhecidos, além de composições sofisticadas de medalhões da MPB. O sucesso de Clara ajudou a popularizar nomes como Dona Ivone Lara, Candeia, Xangô da Mangueira, além de Nelson Cavaquinho, Cartola, Paulinho da Viola e João Nogueira. Para ela, Chico Buarque fez "Morena de Angola", hit em 1980.
A Guerreira morreu, aos 40 anos, em decorrência de complicações em uma cirurgia de varizes, em 2 de abril de 1983, após 28 dias de internação na Clínica São Vicente, no Rio. No dia seguinte, O GLOBO trouxe a manchete “Multidão chora e canta no velório de Clara Nunes”. A reportagem conta que a tristeza do velório, na quadra da azul e branca, lembrou o de Natalino José de Oliveira, o Natal da Portela, morto em abril de 1975 e responsável pela ida da cantora para a escola, em 1972. Milhares de fãs foram se despedir de Clara Nunes, e quando o cortejo saiu às ruas, em um caminhão do Corpo de Bombeiros, a multidão cantou os sucessos da Guerreira.
* com edição de Matilde Silveira

Talento e persistência .Sucesso de Clara Nunes aconteceu após mais de dez anos de carreira Manoel Soares 12/03/1976 / Agência O Globo